sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma noite

A noite se impõe sobre as ruas desertas. Não há viva alma ao ar livre, mesmo sendo noite tão quente. Os prédios apagados aumentam ainda mais a escuridão e até é possível ver algumas estrelas. Silêncio total no centro da cidade. A impressão que se tem é a de que se está prestes a sofrer um bombardeio e que os cidadãos estão enclausurados em seus bunkers temendo pelo fim de suas vidas. As famílias reunidas conversando apenas por pensamentos para que os mísseis inimigos não os descubram ali, rezando pela existência. Nesse momento, consigo até ouvir o som da brasa que queima o tabaco de meu cigarro, sou capaz até de lembrar que respiro.

Nas sombras, ao olhar pela janela, algo caminha em passos arrastados. Um homem que revira o lixo para obter seu sustento. A única vida que se vê na cidade. O único som que se ouve. O ruído da existência que não se pode abrigar na segurança dos bunkers nessa noite. Prestando bastante atenção, ouço algumas vozes. Ao longe, no alto da rua, perto da esquina, um casal, deitado no chão sobre pedaços de papelão, conversa sobre algo que não posso entender. Somente esses quebram, ou talvez aumentem, a impressão do toque de recolher. Com tal quietude, não há como conter a imaginação sobre as possibilidades desse quase retorno aos tempos remotos em que o descanso não era  perturbado pelo constante som de automóveis que correm ruidosos pelas vias como se fossem animais a marcar o território. Do outro lado da rua, um pequeno mercado aberto. Para quem? Para o próprio dono somente, que tem nele sua única companhia e que o deixa aberto sempre que está acordado. Dali e da minha janela, vem as únicas luzes a perturbar a escuridão. (Mas o mercado nunca está aberto até essa hora!) Olho-o da sacada de casa. Ele, sentado na cadeira de praia posta como todos os dias na calçada, também me vê, afinal, seria impossível não notar uma luz acesa. Pareceu-lhe surgir algum quê de esperança sem explicação. Esperança de quê? Talvez de alguém notar que ele existe. Volto para a sala. Apago a luz para incentivar a noite a crescer.

Hoje a cidade nos dá uma trégua da sua insanidade, mas, com os que vagam na rua sem ter para onde ir, nos permite lembrar que ela ainda existe e em poucas horas retornará. Nesse clima de catástrofe, armagedom, fim dos tempos é até possível descansar o ouvido dos eternos ruídos da cidade e acalentar o espírito, que sofre com a pressa do dia a dia. Nem mesmo os cães ousam latir e perturbar o tão esperado repouso do espírito.

Nessa fantasmagórica Porto Alegre, é Natal.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Um outro cartão de Natal

Feliz natal?

Feliz natal aos palestinos que são cercados por um muro como se estivessem num presídio, por cometer o crime de nascer.

Feliz natal aos que moram na rua e são olhados com maus olhos por tentar sobreviver.

Feliz natal a todos os desempregados e subempregados que compõem o exército de reserva.

Feliz natal aos que não tem acesso a água potável, saneamento, educação, saúde e tampouco lazer.

Feliz natal aos que terão de trabalhar mais de 40 anos para se aposentar e aos que nunca poderão se aposentar pela miséria das pensões.

Feliz natal aos negros que são ainda surdamente discriminados.

Feliz natal aos GLBTs que engrentam preconceitos, principalmente os que foram agredidos na Av. Paulista ou assassinados pela ignorância nos diversos rincões do Brasil e do mundo.

Feliz natal aos deficientes físicos que tem sua pouca liberdade limitada pela falta de acessibilidade das cidades e que não conseguem emprego.

Feliz natal aos refugiados e presos políticos e às vítimas dos regimes ditatoriais, presas sem julgamento e esquecidas nas Guantánamos da vida.

Feliz natal aos viciados nos mais diversos tipos de droga que preferem fugir da vida de miséria acelerando o processo de morte com crack, heroína, e outras.

Feliz natal às vítimas de todo tipo de violência, com destaque às vítimas da violência do Estado.

Feliz natal a quem só tem opção de morar nas malocas e pocilgas ao longo do mundo por receberem salários miseráveis.

Feliz natal aos que já nascem condenados à morte e à miséria.

Feliz natal às prostitutas, exploradas pelas casas, pelos clientes, enxovalhadas pela família e pela sociedade.

Feliz natal às mulheres e crianças vítimas de violência familiar por agressões físicas, verbais, subjetivas ou abuso sexual.

Feliz natal aos que foram esquecidos e aos abandonados.

Feliz natal aos deprimidos, bipolares, ansiosos, aos que sofrem de síndrome do pânico, aos psicóticos, vítimas da exclusão e da pressa, do terrorismo da mídia e discurso do medo, do fantasma do desemprego, etc.

Feliz natal a todos os que foram largados nos asilos, manicômios e prisões em condições desumanas, como se a pena fosse maior que a privação de liberdade; aos que não tiveram direito de defesa e aos que mesmo depois de cumprir a pena legal, permanecem confinados.

Feliz natal às crianças e adolescentes que tem de parar de estudar para trabalhar.

Feliz natal aos que tem o direito de permanecer calados e aos que 'confessaram' sobre tortura.

Feliz natal e descanse em paz a todos que vão morrer de fome enquanto há gente que se empanturra com a ceia de natal e não sabe onde pôr tanta comida que vai estragar.

Felicidades a todos os não cristãos e cristãos.

Feliz natal às minorias; todos nós.


Maiakovski
Poeta russo "suicidado" após a revolução de Lenin escreveu, ainda no início do século XX :

No caminh ocom Maiakóvski (Eduardo Alves da Costa)
Na primeira noite,eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.


Depois de Maiakovski
Bertold Brecht (1898-1956)


Primeiro levaram os negros,
Mas não me importei com isso.
Eu não era negro


Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário


Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável


Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei


Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)

Martin Niem ller, 1933


Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei .
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar.


(Martin Niem ller, 1933)


quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A Arte de Escrever

Escrever é como cagar.
Às vezes se tem que fazer esforço
E sai aos pouquinhos.

Às vezes se sabe que se precisa escrever
E se tenta, se esforça e não sai nada.

Às vezes se segura por não ter papel
Ou não pode fazê-lo no meio de todo mundo.
Então, se chega numa privada parte
Ou de preferencia na própria casa e,
Quase sem pensar,
Se expõe ao mundo aquilo que lhe afligia.
Porém, às vezes, de tanto se controlar,
A vontade passa.

Outras vezes são tantas ideias,
Que mal se pode levantar
E outra vez tem que sentar
E continuar o trabalho.

Depois de tanto escrever
Ainda temos a impressão de que podemos mais
Rabisca-se algo, mas só suja o papel.
Perde-se tempo e não sai nada.

Às vezes se pensa que
É apenas uma pequena anotação
E quando se vê, desprevenido,
Se faz uma grande obra.

Há gente que diz que vida é poesia.
Agora acho que concordo.
Por isso toda essa merda!