A noite se impõe sobre as ruas desertas. Não há viva alma ao ar livre, mesmo sendo noite tão quente. Os prédios apagados aumentam ainda mais a escuridão e até é possível ver algumas estrelas. Silêncio total no centro da cidade. A impressão que se tem é a de que se está prestes a sofrer um bombardeio e que os cidadãos estão enclausurados em seus bunkers temendo pelo fim de suas vidas. As famílias reunidas conversando apenas por pensamentos para que os mísseis inimigos não os descubram ali, rezando pela existência. Nesse momento, consigo até ouvir o som da brasa que queima o tabaco de meu cigarro, sou capaz até de lembrar que respiro.
Nas sombras, ao olhar pela janela, algo caminha em passos arrastados. Um homem que revira o lixo para obter seu sustento. A única vida que se vê na cidade. O único som que se ouve. O ruído da existência que não se pode abrigar na segurança dos bunkers nessa noite. Prestando bastante atenção, ouço algumas vozes. Ao longe, no alto da rua, perto da esquina, um casal, deitado no chão sobre pedaços de papelão, conversa sobre algo que não posso entender. Somente esses quebram, ou talvez aumentem, a impressão do toque de recolher. Com tal quietude, não há como conter a imaginação sobre as possibilidades desse quase retorno aos tempos remotos em que o descanso não era perturbado pelo constante som de automóveis que correm ruidosos pelas vias como se fossem animais a marcar o território. Do outro lado da rua, um pequeno mercado aberto. Para quem? Para o próprio dono somente, que tem nele sua única companhia e que o deixa aberto sempre que está acordado. Dali e da minha janela, vem as únicas luzes a perturbar a escuridão. (Mas o mercado nunca está aberto até essa hora!) Olho-o da sacada de casa. Ele, sentado na cadeira de praia posta como todos os dias na calçada, também me vê, afinal, seria impossível não notar uma luz acesa. Pareceu-lhe surgir algum quê de esperança sem explicação. Esperança de quê? Talvez de alguém notar que ele existe. Volto para a sala. Apago a luz para incentivar a noite a crescer.
Hoje a cidade nos dá uma trégua da sua insanidade, mas, com os que vagam na rua sem ter para onde ir, nos permite lembrar que ela ainda existe e em poucas horas retornará. Nesse clima de catástrofe, armagedom, fim dos tempos é até possível descansar o ouvido dos eternos ruídos da cidade e acalentar o espírito, que sofre com a pressa do dia a dia. Nem mesmo os cães ousam latir e perturbar o tão esperado repouso do espírito.
Nessa fantasmagórica Porto Alegre, é Natal.