O Drama De Um Homem Só
“O próprio acontecimento que o lança no desespero, imediatamente
revela que toda sua vida passada tinha sido desespero.”
Sören Kierkegaard
Neste quarto
iluminado a meia-luz pela lua que se reflete sobre a madeira da mesa, de modo que
tudo toma uma tonalidade melancólica, em preto e branco, jaz deitado, composto quase
que somente por carne, afastado da possibilidade de sentir vontade, o corpo de um
homem: eu. Abandonado por qualquer esperança, a parca restante força que possuo
é capaz de permitir-me refletir e fazer com que eu me levante em direção à minha
querida escrivaninha, situada no lado oposto ao que me encontro do cômodo. Após
imenso sacrifício chego lá e, fazendo um barulho estridente que fere tudo que há
dentro de mim, doendo-me os olhos secos, abro a gaveta onde descansa a vida e o
que vier depois. Seja lá o que for não será pior do que agora neste lugar opressivo.
Sem medo, com sonhos, com visão de uma talvez única saída ignoro o que poderá
vir.
Vida? Não
sei o que é. Nunca vivi. De qualquer forma acho que não é necessário ter vivido
para saber o que é vida. O conhecimento não precisa ser empírico... Apenas aprecio
o sangue correr pelas minhas veias, mas a vida já se esvaiu pelas lágrimas há tanto
tempo que me é impossibilitado, o ato de voltar atrás para contar. A luz do sol
que brilha em algum lugar lá fora há muito não conhece o meu rosto que não consegue
mais ter qualquer sinal de um semblante de júbilo. Conte, como eu contei, os momentos
tristes da vida e compare com os momentos felizes, e se não bastar para você, que
tal testar a grandiosidade e a influência destes em sua vida, e note; os tristes
são e sempre serão maiores. Quem sabe se por beleza ou por outra coisa qualquer.
Talvez minha alma seja pequena (ou não), porque nada, ao que parece, vale a pena.
Agora eu estou aqui, preparando minha arma para a liberdade.
Onde foram
parar as tão desejadas boas notícias que alegravam todos que a ouvissem? Os amigos
de verdade? Onde e em que momento do passado enterramos o sorriso? A felicidade?
Por que nos deixamos aborrecer pelo que nós mesmos fizemos? Não deveríamos tê-lo
feito certo? Então por que não consertamos se achamos que está errado? Será por
querermos sempre culpar a outrem? Onde foi parar a emoção que envolvia as massas
em sentimentos uníssonos e embriagava de exultação, como vemos nos filmes e livros
de história? Estão todos mortos, ou apenas fingem-se assim? Alguém, diga-me! Por
favor... É certamente em vão... Caso soubéssemos voltaríamos para buscá-los, entretanto,
ninguém faz idéia de onde eles estejam. Ninguém se deu conta de que vendemos nossa
liberdade, felicidade, entre outros, por futilidades que sequer individualmente
almejamos. Sendo que destas tolices que adquirimos nunca usufruímos porque estamos
sempre lutando para conseguir mais delas. E os que perceberam, entre eles eu, a
terrível situação de desleixo na qual nos encontramos tornam-se infelizes e sozinhos
e não fazem nada, perdidos cada um no seu canto protegidos sob o manto da friagem
da noite. Tudo se tornou acre e vazio e monótono e entediante e taciturno e sei
lá mais o que.
Eu agora te
diria meu nome, mas, de que importa? Sou só mais um, como você que se esconde debaixo
de uma falsa força e nos momentos íntimos revela a criança amedrontada que não consegue
dormir e chora a madrugada toda a procura dos pais que não encontra presentes nunca
e acaba dormindo de tanto choramingar. Igual a todos e mais nada! Não adianta fingir
que contigo é diferente já que não pode enganar a si mesmo. Somos apenas a sombra
vazia daquilo que esta a nossa volta, querendo abandonar a si mesmo para um modo
de ver e de ser que não é nosso e impede-se de entregar-se a si mesmo. Todavia,
nunca mudará, pois não se sabe o que realmente está além, aquilo que, talvez, verdadeiramente
rege a este todo de seres sem face, sem alma, sem nada mesmo que tenham tudo...
Se é que existe algo. Sinceramente sou despossuído de qualquer vontade de continuar
minha existência compactuando com a vileza deste mundo hipócrita que finge ser cego
ante suas próprias desgraças para tentar viver melhor... Arre! Tomo-me de profundo
asco com tal circunstância deprimente, deplorável... Sequer consigo lembrar disto
sem embrulhar-me o estômago!
Os românticos
sonham e morrem e são tidos como loucos pelo senso comum por fugirem da realidade
(realidade?) - entenda-se como românticos não apenas aqueles do período literário
do romantismo, mas todos aqueles que navegam em devaneios e anseios impossíveis.
E nós? Morremos e nunca sonhamos! Loucura é permanecer vivo sem poder sonhar, presos
a uma necessidade de estar ligado intimamente à razão e passar grande parte do tempo,
senão todo, tentando simplesmente manter-se vivo neste mundo sem fazer a menor idéia
do porquê, se é que precisa haver um porquê também! Mas, pensar sobre tais questões
parece-me o mínimo para entender-se como ser pensante. O primeiro passo para ser
um ser completo é a inquietação e reflexão a respeito daquilo que está a sua volta.
Ah! Termino meus miseráveis dias só, pois ousei sonhar e pensar... A lua e seu esplêndido
fulgor não ofuscam a luz negra de desalento e tristeza da real liberdade e sua dor.
Se é que não estou enganado de novo, se é que pode existir a extraordinária e eternamente
idealizada real liberdade. Existem coisas que jamais poderão ser entendidas pela
racionalidade. Quem sabe possam ser compreendidas apenas pela confluência de sentimentos
surgidos e apreciados de maneira indescritível pela solidão? Ah se eu pudesse ter
consciência de todas as reações misteriosas da natureza...
Eu acordei
e fui capaz de compreender que não há sequer um homem livre a caminhar sobre esta
terra erma, e creio não valer a pena viver sendo escravo do que se julga como si
mesmo e do mundo ausente de fantasias que o cerca, destruído por desejos pequenos
e pela tremenda pressa sob a égide da qual se encontra a humanidade de hoje e, quem
sabe de sempre? A ciência e tecnologia, com a ambição insana apagaram o fogo da
magia da beleza da arte da poesia da esperança de viver em um mundo que pode fazer
você se sentir bem. De maneira nenhuma sou contra avanços tecnológicos, desde que
não atropelem a individualidade e nossas doces quimeras que amenizam o desproporcional
amargo de durar.
Nesta vida
insignificante de sentido algum, senão de reflexão sem importância, pensei que não
agüentaria compactuar com essa destruição que se estabelece à volta de todos nós
até que eu completasse trinta anos de velhice (Isso mesmo! Desde sempre velhice!
E no sentido mais pejorativo possível, talvez até mesmo além do imaginável). Agora
com a arma já pronta, lembro desses fatos e vejo que eu estava errado, uma vez que
agora, pouco depois dos vinte, sei que de agora não passarei... O tempo corre como
uma lesma e o pensamento como jato e quanto mais você pensa, descobre que o tempo
só existe para aquilo que acaba (não quero que meus sonhos e minha alma acabem!
Se pudéssemos ser só pensamentos.... ah!). A cada pensamento o mar de tristeza afoga-te
devido a sua paciência já, há muito, ter se exaurido e sua garganta cansado de tanto
gritar surdamente aquilo que te aflige e ninguém da atenção; sua decepção... apenas
sua...
Embora sintam-na
todos, a desilusão, eu percebo, tento entender como ela faz para agir sorrateiramente
em todos nós. E tenho o direito de escolher fugir da escravidão, arriscar tornar-me
livre pelo menos uma vez, batalhar pelo que realmente acredito... Sim! Eu posso
o que quiser comigo mesmo já que não sou de ninguém, senão de minha alma extremamente
esgotada pala lassidão... e você também é provido deste direito pelas leis da natureza.
Não se deve nascer privado de direitos de liberdade individual, de pensamento e
de ação acima de tudo. Já que falei em tempo um pouco mais acima, em tempo falo
e faço-te compreender a velocidade incomensurável do pensamento. Pense em todas
a sua vida, veja todas as tristezas, saudades do que nunca terá e até de alguma
felicidade perdida e muito distante. E então? Acho que você não demorou nem um ano
para lembrar de toda a sua vivência. Penso talvez ser melhor deste modo; uma estratégia
da bela vida para diminuir a eterna aflição que sempre será viver. E eu apenas perco
o meu tempo, já que sou covarde e terminarei no início e continuarei esse ciclo
que se repete há longos e intermináveis anos (décadas? Talvez...), inteiramente
só... com a arma ao meu lado na escrivaninha, lamuriando-me de tudo e de todos...
espero que você tenha mais sorte... Com o sol que retorna agora ao amanhecer ou
com a noite que o sucederá como de costume, se é que você consegue acreditar nisto
de que o dia inevitavelmente surge posteriormente à escuridão noturna. Eu
desisto.
***
Quem sou?*
Sou a amarga lágrima última
Que verte dos olhos da esperança,
Que silenciosa e triste e súbita
Ruma ao solo, vagarosa e mansa.
Eu sou da alegria o derradeiro suspiro
Exalado com pesar e sofreguidão
Antes de apagar-se o círio
Que a faz tombar ao chão.
E sou, de jazer, a vontade
Residente em cada alma muda.
Desgraça que em todos bate.
Sou o aceno de partida
Que de pranto o coração inunda.
Sou a existência absurda.
*D’O Eu
Mais Íntimo