No início
desse mês de janeiro eu assistia televisão, por incrível que pareça, e, mais
incrível ainda, vi duas matérias sobre temas bem interessantes. Uma pena que a
abordagem fosse rasa e unilateral – como é típico, aliás – mas o assunto é
capaz de suscitar diversas questões e ambos eram de certo modo interligados.
A primeira
dizia que determinado cientista havia criado um método por meio do qual se
poderia estabelecer uma comunicação com pacientes em estado vegetativo. Com um
sistema binário “sim/não” de linguagem, por observação das áreas do cérebro
ativadas em determinada cirscunstância seria possível comprovar que pessoas em
estado vegetativo têm consciência e se comunicar com elas por meio de perguntas
cujas respostas se encaixariam no sistema “sim/não”, antes estabelecendo um
código com o paciente para que ele pensasse em determinada coisa para dizer
“sim” e outra para dizer “não”, assim, com uma tomografia do cérebro se
comunicaria com essas pessoas. Não ousarei entrar no mérito do método, pois não
tenho conhecimentos nessa área para fazê-lo. Considero, então, que a
constatação seja verdadeira, ou seja, que um individuo em estado vegetativo
ainda sim é consciente de si e capaz de captar o mundo a sua volta.
Curioso
observar a alegria com que foi dada a notícia. Por essa “descoberta” era outra
vez concedida a vida àquelas pessoas. Talvez dentro de algum tempo elas possam
se manifestar plenamente, propagam esperançosos. Realmente a possibilidade de
se comunicar é algo fantástico sem a qual é difícil viver, pela impossibilidade
de interação com o mundo. A linguagem, seja qual for a forma pela qual se
estabeleça, é fundamental para todo ser consciente. Mas, essa comunicação do
experimento atual lhes é possível apenas passivamente, pois não se pode tomar a
iniciativa na conversação, mas apenas responder o que interessa ao inquiridor.
Ainda assim, não foi isso que me chamou a atenção.
Pensei,
entretanto, no que significa ter consciência em um corpo que não se pode
controlar, que não é capaz de concretizar suas atitudes proposicionais e não
consegue se expressar. Lembrei de algo que vi em algum lugar onde alguém dizia
crer que ao morrermos nada acontece. Permanecemos conscientes sentindo os
vermes decomporem nossos cadáveres. O que eu poderia supor ser ter consciência
em estado vegetativo? Imagino-me agrilhoado. Mais que isso. Atado a uma cadeira
ou cama, amordaçado, ou mais precisamente, sem cordas vocais, a observar as
coisas, sendo transportado tal qual objeto, de um lado a outro, alimentado,
banhado, etc. Independente da minha vontade, incapaz de manifestar meus
desejos, os quais, se há consciência, existem. Transformo-me em um objeto –
pelo qual outras pessoas podem ter apreço, amor, etc., mas ainda assim um
objeto – um objeto consciente. Como se um mineral, sujeito às intempéries do
sol, da chuva, das inundações, de arremessos, de chutes, etc. Tivesse
consciência, vontade, ou pior, sensações, ou seja, dor, alegria, tristeza, mas
não pudesse expressá-las. Não pudesse se fazer compreender. Haveria maior
pesadelo que esse? A solitária mais estreita. O destino mais cruel. A vida mais
proibida. A frustração ininterrupta e eterna.
A matéria que
anuncia a descoberta é feliz, esperançosa. Ninguém fez aos pacientes a pergunta
que Ramón Sampedro afirma ao padre: “Vida sem liberdade não é vida”?
Enfim, minutos
depois transmitiram a outra matéria. Cientistas alegam que a mais jovem geração
atual alcançará os 150 anos e, segundo alguns, é possível inclusive chegar à
imortalidade! No entanto, pensar sobre o primeiro caso e desconsiderar o
segundo já é suficiente. Imagine viver 150 anos! E com saúde e disposição,
prometem os cientistas! Dizia que nossas casas terão aparelhos médicos que nos
monitorariam a saúde e emitiriam laudos diagnósticos que nos preveniriam enfermidades!
(Entre essas duas matérias passou outra que dizia não haver energia elétrica
até hoje em 1% das residências brasileiras. Esqueceram, porém, desse panorama.)
Imagine-se, no entanto, que todos tenham acesso a essa maravilha. Seria uma
felicidade só!
Penso sempre
em alguns problemas de ordem prática. Vivendo-se 150 anos, com quantos se
aposentaria? Não vou nem abordar o imenso prazer de acordar todo dia às 6h da
manhã e de ficar dentro do trabalho por 9h ou 10h, incluindo o almoço. Se nos
aposentarmos aos 65, a previdência nos pagaria por 85 anos. Pouco provável.
Além disso, a primeira geração aproveitaria. As demais não se aposentariam
nunca, pois faliria o sistema previdenciário. Como hoje a expectativa de vida é
de uns 70 anos e a aposentadoria aos 65, considerando que isso corresponde a
uns 93% da expectativa, na mesma proporção, teríamos de trabalhar até uns 140
anos.
Não bastasse
ser obrigado a trabalhar por até mais de um século, imagine o que uma vida tão
longa implicaria em termos de contingente populacional! Pior. Se demora tanto
para atingir a aposentadoria, com quantos anos os filhos conseguiriam uma vaga
no mercado de trabalho? 60? 70?! Se teria então de sustentar filho e neto,
talvez bisneto, por setenta anos?! Que alegria. Trabalhar mais de um século,
nunca ter dinheiro para si, depender dos pais até a terceira idade, não se
aposentar nunca, disputar espaço com 40 bilhões de habitantes no planeta, viver
em apertadas moradias raras, consequentemente muito mais caras que os absurdos
atuais, cada vez menos árvores para caber todo mundo sobre a superfície da
Terra... Realmente, viver 150 anos com saúde e disposição é um sonho! Pois
pouco provável que fora do sonho tenha alguma vantagem, a não ser para quem não
precisa trabalhar e continuará vivendo em um mundo a parte que já é fora da
realidade. É fantástico.
Sou obrigado a
lembrar do Humano, demasiado humano de Nietzsche quando ele diz: “Há um direito
que nos permite tirar a vida de alguém, mas não há nenhum que nos permita tirar
dele a morte: isso é pura crueldade.”