quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

1o lugar no concurso nova literatura brasileira

Começando o ano com boas novas, compartilho com vocês a informação que recém tive. Fui galardoado com a primeira colocação no concurso. Inscrevi-me com o conto "Uma Noite", que está no Livro de Um Desconhecido, o qual será lançado em breve, e o poema inédito Aos Poetas.

Quase não tenho escrito poemas ultimamente. Este é um dos poucos. Estou deixando-os guardados para quem sabe um possível trabalho no futuro. Eu o inscrevi sem maiores pretensões já que sou um tanto descrente de concursos e, para mim surpresa, o poema foi escolhido!

O poema ainda não está no blog, então, em primeira mão, logo abaixo.

Aos Poetas

Mas não há mais tempo, com ecos há quem diga,
Para se sentar, deter e ler, hoje em dia,
Com a imersão que requer a poesia.
Contudo, cadê o poeta que não fisga

O leitor, ser humano, ou seja, curioso,
Com a arte das palavras que é o seu dom?
Talvez o escritor se ate a ter por bom
Aquilo que retém por complexo. O gozo

Que guarda em si, porém, uma boa leitura
Distancia do outro por pôr em segredo
O que deveria saltar-nos em desvelo!
Ei, não queria dizer algo, criatura?!

Então por que o esconde em versos obscuros,
Em ordens confusas de escritas modernosas?
E depois, de gênio incompreendido posa
E não o agrada quando se lhe é duro

Quando se expõe que esses excessos de floreios;
O soerguimento, à compreensão, de obstáculo;
Escrever telegramático; o ar de oráculo
E a máscara de nobre e sábio devaneio

São ótimas estratégias a esconder
Que na verdade nada se tem a dizer.


15-09-2012


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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O senhor na cantina


Pela segunda vez aquele senhor entra, dá uma volta na cantina e sai em seguida. É evidente que procura algo. Caminha pelo corredor num vai-vem desorientado. Para e se recosta sobre o parapeito do terceiro andar do prédio, mas apenas para se afastar, encontrar outra breve parada num banco ou apoiado em uma pilastra antes de retomar o impaciente ir e vir. Na terceira vez que entra na cantina,  pergunta à moça do caixa: “O professor Mário vem hoje?”. “Ele costuma vir aqui. Não sei se hoje exatamente, mas é provável que sim.” responde solícita, apesar de ser raro receber tão cordial tratamento por parte dela. Talvez a universidade estar vazia por ser adiantado dezembro tenha-lhe diminuído o trabalho, amenizado o dia e, com isso, concedido uma pitada de bom-humor.

Após a esperança aumentada com a informação de que “ele costuma vir aqui”, o senhor toma uma cadeira e senta à mesa com a postura ereta, mas as mãos atadas uma à outra, escondidas entre as pernas, porém chamando atenção a si com o irrequieto movimento dos polegares e o esporádico esfregar da palma de uma nas costas da outra a secar o suor da ansiedade, para então retomar a posição do esconderijo.

O senhor era baixo e calvo. As entradas eram compridas e um rastro de ralo cabelo ao centro indicava quase o antigo limite da testa, hoje alongada. Os fios brancos eram compridos e pendiam quase até as sobrancelhas, lisos e ligeiramente arqueados. A barba, entretanto, era comprida e cheia, conservando um pouco do brilho ruivo que deve ter colorido também o cabelo na distante juventude. Que olhos tristes eram aqueles encrustados abaixo do suor que lhe entumescia a testa que brigava e não se decidia entre franzir-se ou não naquele rosto enrugado! O olhar perdia-se ora sobre a mesa, ora a observar hipnotizado o corredor onde ninguém passava. Uma atmosfera tão sombria que umedecia os olhos e quase não era possível não se comover com aquele nítido sofrimento amargo, sufocado, reprimido por décadas. Quem quer que o notasse sentiria uma dificuldade em engolir a própria saliva, aquele constrangimento por trás dos olhos e a pressão próxima ao nariz.

Quem, todavia, descobriria o que de fato origina isso? Quem arriscaria um palpite e lhe seria certeiro às aflições do subconsciente? Quem quer que fosse, por melhor alscutador, por mais exímio perscrutador, seria incapaz de alcançar-lhe o fundo dos seus pensamentos, o mais íntimo do seu ser formado ao longo de árdua e incógnita existência.

Há vinte e cinco anos não via Mário. Agora Professor Doutor Mário. Na época era-lhe ainda um menino, por mais que já fosse adulto. Não gostava de lembrar, porém era a mais recente e viva lembrança de Mário. Então tinha impreterivelmente de agarrar-se a ela para poder senti-lo ali. Como Mário estaria agora, não sabia. Teria filhos? Teria casado? Depois de mais de duas décadas, qualquer coisa poderia ter acontecido. Procurou na internet e descobrira tão-somente que Mário havia estudado bastante e, hoje Doutor, lecionava na Universidade. Tinha vários artigos e diversos livros publicados. Parece que estudara no exterior e era renomado internacionalmente. Como isso o alegrava! Uma pena as circunstâncias da vida terem impedido de continuarem a manter contato. Mas, quem escolhe a vida que tem? Quem pode determinar todos os rumos a se tomar? Até onde atribuir culpa não é injustiça? Desconhecimento das causas e do poder de interferência que elas têm?

Pareciam-lhe brilhar os olhos marejados de saudade. A expansiva força que não se pode conter ou controlar, que nos força de dentro para fora e sentimo-la como se agisse fisicamente. Esse impelimento transforma-se na ansiedade que observamos no início; na inquietude.

O Sucesso, porém, amenizava-lhe a dor. Se não havia sido capaz de ajudar, ao menos o distanciamento não atrapalhara. Não era o suficiente para demover a aflição de todo esse tempo em que se cria ser irremediável o obnubilamento de um na vida do outro. Agora imaginava uma chance de poder novamente clarear e quiça refazer a ligação que outrora os uniu. O filho ter seguido tão firme caminho inegavelmente enchia-lhe de orgulho. Mas não queria que parecesse por isso, para participar do mérito, por interesse, no intuito de expô-lo como troféu-genético, talvez. Não era por isso. Antes, desesperado por revê-lo, aconselhado por um amigo, usou um buscador da internet para tentar localizá-lo e foi assim que descobriu parte da trajetória profissional do filho desaparecido no mundo.

Na verdade, em todos esses vinte e cinco anos aquele senhor remoía o arrependimento pelo afastamento, todavia não sabia o que fazer. O orgulho era demais para fazê-lo se aproximar. Quem diria que com o tempo o orgulho que tinha passaria a nutri-lo positivamente em relação ao filho?! À época do desentendimento, eram ambos imaturos. O filho tinha razão para isso. Era muito novo, então compreensível, ainda que incorreto. Já ele, bem... Era pai de um filho que já trabalhava e entraria na faculdade. Nada havia que desculpasse. Falhara e tinha de se desculpar. Não tinha coragem. Levou todo esse tempo dia a dia recolhendo e acumulando forças para isso. Contraditoriamente tinha de passar por cima de si mesmo para conseguir suplicar perdão e por fim libertar-se da culpa e do remorso que lhe pesavam sobre os ombros e nunca lhe permitiram a leveza de viver. Esperava ali, então, resgatar a liberdade, ou melhor, conquistar a leveza de consciência.

Há poucos meses um exame indicou e uma série de outros comprovou o avançado câncer no estômago. Aquilo que lhe doía não era mera gastrite ansiosa causada pela angústia. Talvez um dia tenha sido, mas de úlcera fez-se câncer que à altura do diagnóstico já contaminava pulmão, intestino, laringe e não se sonhava mais com hipóteses de cura. Era fatal e aceitava com tranquilidade. Estava acostumado à dor, podia-se dizer, e também não temia morrer. Felizmente isso não o perturbava. A ciência dos últimos dias, das derradeiras oportunidades de realizar o que tinha vontade, foi o impulso que precisava.

Não o importunava o ambiente totalmente desconhecido, esse, universitário, nem o calor que castigava nessa tarde decembrina. No mundo que fora dele acontecia, ou fingia, importava-lhe única e exclusivamente o Professor Doutor Márcio. Nada mais. Por isso, discreto e ensimesmado aguardava-o. Para desafogá-lo do indescritível peso de uma ferida que em uma geração não cicatrizou e da culpa de tê-la provocado. Aos poucos toda a região em volta do machucado necrosava contaminando os arredores. O perdão seria a cura. No entanto, o professor Mário Nunca chegou.


Pelo menos não enquanto eu estava também na cantina. Felizmente! Afinal, se ele chegasse talvez essa história jamais fosse escrita. Talvez eu saberia que o real motivo que fazia aquele senhor aguardar o professor Mário era que a nota do período anterior não havia sido lançada e isso estava a impedi-lo de colar grau. Mas, sendo isso, não teria graça o conto.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Paris: Marcha da Intolerância


Trezentos e cinquenta mil marcharam em Paris contra a igualdade de direitos entre os seres humanos. Trezentos e cinquenta mil marcharam na cidade luz em favor da intolerância. E não, não se trata de marcha militar da ocupação nazista sobre a capital do conhecimento, das artes, da poesia, da “cultura” que a concederam a alcunha. Não é da de 1940 que falo, mas da de 2013; 13 de janeiro de 2013. A escuridão da discriminação e do medo que marchou com seu ódio sobre as vias parisienses foi outra. Cristãos, evangélicos, muçulmanos e partidos conservadores marcharam contra a igualdade entre hetero e homossexuais. Triste que as religiões se unam para pregar a intolerância, desigualdade e desrespeito. Será isso que as une em suas doutrinas?

Essa onda de agressividade ao outro encontra eco em distantes partes do mundo. Discutir é inútil, pois, de tão desarrazoados os argumentos que defendem a discriminação, de nada adianta mostrar a incoerência deles. O intolerante segue por fé, não por razão. Seja a fé que for. Os argumentos podem ser aplicados a qualquer objeto. Serão sempre falsos, mas terão sempre adeptos. Sempre os mesmos adeptos. Não percebem que o objeto do preconceito poderiam ser eles mesmos. É simples. Escolhe-se um grupo, dota-o de características universais àqueles indivíduos e identifica-as como a fonte ou o resultado dos problemas sociais; ou pior, alega que a vítima do tratamento degradante gosta de ser degradada. O argumento segue uma linha e vale-se de pelo menos uns dois ou três conceitos intangíveis como natural/anti-natural, natureza humana, moral/tradição, pureza, preservação da espécie/raça ou outras coisas do tipo que, se questionadas a fundo não encontrarão respostas sobre o que de fato são, e justamente por isso consegue ser moldadas pela má-intenção para justificar qualquer coisa.

É inadmissível que um negro, que também é vítima do preconceito de muitos, seja machista. É incoerente. Ele conhece o sabor de ser discriminado! É inaceitável que um latino seja racista, ele é também mal-visto e tido como origem de inúmeros problemas em diversas partes do planeta. É inaceitável que um estadunidense seja averso a judeus, justo o cidadão do Estado do qual mais se tem ojeriza sobre a face da Terra e cujo ódio às políticas governamentais se reflete contra seus cidadãos. É estúpido que um eslavo seja homofóbico, esqueceram que eram os “Untermenschen” para os nazistas e que, para a ignorância destes, eles deveriam ser dizimados? Esqueceram o sabor da discriminação e que os argumentos que hoje usam contra os outros é o mesmo que lhe dizimou avós? É imbecil que qualquer grupo humano seja discriminatório posto que é passível de encaixar qualquer um no argumento do preconceito de acordo com a situação, momento e conveniência do discurso preconceituoso. Por isso, o preconceituoso na maioria das vezes dirá que não o é. Começará seu discurso discriminatório e segregador com frases como: “Não sou preconceituoso, tenho até amigos (do grupo sobre o qual armará o discurso de segregação), mas...”

Choca que haja tanto rebuliço quando a questão é o reconhecimento dos direitos a homossexuais a fim de tornar-nos legalmente iguais, o que já é, no caso do Brasil, garantido pela Constituição Federal pelo reconhecimento de que há que se trabalhar pelo bem de todos sem qualquer tipo de discriminação. Qualquer dispositivo que contrarie este princípio, inclusive constitucional, porquanto este é princípio fundamental, é inconstitucional. Nem deveria haver discussão sobre casamento homossexual dentro do Estado Democrático de Direito submetido à Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Mas, independente de lei, qualquer um que queira pensar notará que a vedação de acesso a direitos um grupo específico da população simplesmente por existir, é discriminação.

Mas, choca principalmente porque não se vê tanta discussão e mobilização contra a precarização do sistema público de ensino ou sucateamento e privatização da saúde, que é direito de todos. Tampouco se vê grande engajamento pela erradicação da pobreza e desconcentração de riquezas a fim de garantir a todos uma vida digna, como apregoa, além daquilo que é justo, até mesmo a moral cristã. Não me lembro de ter visto tanto interesse sobre os planos diretores das cidades e seus sistemas de transporte que afetam diariamente a todas as pessoas de cada cidade. Que dizer das reformas previdenciárias?! Quando se trata da retirada de direitos do todo, não há quase manifestação. Quando se trata de conceder direitos iguais a grupos discriminados, ah... Quanta gente grita! E esses que gritam nessa hora, são os que silenciam, não fazem nada quando a população em geral tem os direitos tolhidos. Melhor é estar acima da miséria geral, ainda que na mesma miséria, que bem estar junto com o todo.

Nessa cegueira não há como cuidar de si. Ou talvez justamente por nunca ter se conhecido e cuidado de si buscando a prática da própria liberdade, desenvolva tamanha cegueira. E nem adianta discursar que é liberdade ser contra os direitos iguais, pois a liberdade não pode gerar opressão, senão é opressão e não liberdade. A prática da liberdade é aquilo que não gera opressão e opressão é aquilo que impede a prática da liberdade. É um método de análise. Tal ato é de liberdade? Ele oprimiu algo? O quê? Se a opressão, ok. Se a liberdade, então não foi ato de liberdade. Por exemplo: a liberdade pode dar liberdade de escravizar? Não, porque escravizar é ato de opressão, portanto não está na esfera da liberdade. Então, nunca haverá liberdade na defesa da restrição de direitos a um grupo por sua mera existência.

Quem é contra direitos iguais, é contra a liberdade do outro. Esse medo da liberdade alheia só pode ser fruto de impulso reprimido. Não desfrutar da própria liberdade de agir gera inveja de quem a tem. O resultado disso é o preconceito contra o outro que conquista.

O preconceito além de se fundar no medo da liberdade do outro tem também alicerce na inveja das conquistas do outro. Aquele que nutre preconceito contra alguém, ou seja, que oprime com luta contra a igualdade de direitos, é incapaz de observar as próprias conquistas ou as desvaloriza e se sente ofendido pelas do outro, crendo implicar em consequente perda para si.

A necessidade de privilégio, independente de que tipo e em que ele for supostamente embasado, é medo de que o outro, no caso de igualdade de condições, se mostre "melhor", desconsiderando que "melhor" e "pior" apenas existe em "competição" e considerando um aspecto isolado, em vez do todo. Um peixe nada melhor que um pássaro, mas nem por isso um peixe é melhor que um pássaro. Todavia, o medo impede esse tipo de análise racional e o preconceituoso se obceca por aspectos específicos, isolando-os do todo e compreendendo-os descontextualizadamente. Todo preconceito - que é toda ação, omissão, discurso, etc. que é contra a igualdade de direitos, de ser - é uma falha da análise racional provocada por esta inebriar-se pelo medo.

Dada tanta violência dos discursos, sugeriria o seguinte acordo: Cada um ser tratado exatamente da forma como defende para o outro. Então, quem é a favor da legalização maconha, que tenha maconha; quem é a favor do casamento homossexual, que tenha o direito de se casar; quem defende o cerceamento de direitos a outros, que tenha seus direitos cerceados; quem defende a intolerância, estará a escolher o que quer para si. Quem defende a pena de morte... Se defende para os outros, deve ser bom, afinal, quem defende o mal, não é verdade?

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O privilégio de morar na Cidade Maravilhosa



Exausto. Depois de um longo dia de trabalho o suplício do desumano calor causticante do Rio de Janeiro se faz ainda mais pesado. No verão, além da temperatura desconhecer limite, ainda o sol demora a se pôr. Ao sair do trabalho ele ainda brilha forte e sarcástico, bem na altura dos olhos, forçando-nos a quase fechá-los para tentar enxergar. É isso um perigo numa cidade de trânsito tão caótico e “livre”; onde o sinal vermelho não é garantia da para dos carros e as bicicletas acham que não são veículos e correm displicentes na contra-mão ou zigue-zagueando nas calçadas, para o pavor principalmente dos idosos. Com isso e o sol que cega, atravessar a rua é arriscado. Assim, suando e o tempo todo secando a testa e a nuca com a mão ou a camisa, segue-se ao ponto de ônibus.
“Ao ponto de ônibus?!” Deve estar se perguntando o não-carioca. Rio de janeiro: praia, calor, mulheres bonitas (nenhuma cidade anuncia seus homens bonitos), samba, futebol, etc. É crença quase generalizada que com esses dias mais longos “o carioca” aproveita para ir à praia. Já não gosta de trabalhar... Mas, quem gosta? Nas areias de Copacabana, Ipanema, Leblon, na pedra do arpoador amontoam-se milhares e milhares de pessoas! Porém se ouvirá tanto português quanto não-português. E os que falam português serão paulistas, mineiros, gaúchos, etc., em gozo de férias. O carioquês talvez se ouça no vendedor de picolé e no atendente do quiosque de preços módicos para fazer o turista feliz. Essa imagem exportada talvez só exista graças aos que acreditam nela e vêm ao Rio, às praias, para conhecer essa imagem. Lá, lotam-na, formando-a. Talvez... O carioca, coitado; malandro, esperto, sacana, do gingado e do samba nunca foi, em sua maioria, ao Cristo ou pegou o bondinho do Pão-de- Açúcar, tampouco sabe como se chega à Lagoa ou São Conrado. Sai do trabalho, se amontoa no ponto de ônibus, tentando uma vaga à sombra e depois torce para que ele para ao sinal. Se não pegar no ponto final, vai em pé. Se pegar, provavelmente vai em pé, ainda assim.
O malandro, sem chapéu branco e com sapato apertando o pé, paga a passagem – que somado ida e volta, se pegar dois ônibus por trecho, gasta diariamente em transporte 1,5% do salário mínimo – e viaja espremido até chegar em casa após as duas a três de trânsito que separam os em média 15 quilômetros entre o trabalho e a moradia. Mas, o carioca, bem humorado, divertido, transforma o translado em alegria. É sempre uma aventura garantida. Sim. O trajeto dentro daquele caldeirão normalmente empresta alguma curiosa distração, um fato inesperado para ajudar a passar o tempo. Pode ser um assalto ou um tiroteio, é verdade, mas às vezes são coisas amenas, um acidente, um atropelamento ou qualquer outra bobagem. Ah, e claro, acompanhado pelo serviço de bordo dos ambulantes que entram e saem dos ônibus ou circulam pelos corredores do congestionamento. Tudo isso à trilha sonora do radinho do motorista ou do celular de algum passageiro simpático, que, com a receptividade carioca, quer emprestar entretenimento aos que não tem um telefone musical e, entediados e tristes, dormem. Da Avenida Beira Mar a Marechal Hermes, ah, nunca se passa em branco.
Nesse trajeto o ônibus acelera, freia, para, xinga e se arrasta pela Av. 1º de março, estagna no mergulhão e em marcha Largo alcança a Praça Mauá somente para manter o mesmo ritmo, agraciando-nos com o poder admirar a inefável paisagem dos armazéns abandonados, pichados, do odor de urina e da realidade dos que dormem na rua. Bem, mas ao conforto de se estar protegido da violência do sol pela sombra do viaduto da perimetral – que, registro na história, ainda existe; ao menos por enquanto.
Por ali em algum lugar subiu um passageiro que agora, cordial, grita com a cobradora, que, animada e feliz como todo carioca, o manda tomar em tal lugar e ir para tal outro, que não vale a pena repetir. O motivo do entrevero? Bem, muitas vezes se paga a passagem com um tal cartão com o vernacular nome de Riocard, o qual combina inclusive com os tais recém inventados BRT – Bus Rapid Transit. No entanto não orna com a tupiniquinzice do VLT – Veículo Leve sobre Trilhos.
Ocorre então que a cobradora não tinha troco porque o passageiro pagou com a fortuna de vinte reais os dois e setenta e cinco da passagem. Faltam vinte e cinco centavos e o rapaz diz que vai descer na Rodoviária, que o aroma do entroncamento daquele rio lindo com a Baia de Guanabara mostra estar próxima. Então, a moça, simpática, em atenção ao cliente e preocupada com a imagem do serviço, alerta-o que melhor seria se tivesse deixado de ser sedentário e tivesse caminhado, pois era perto. No final da história ele desce sem a moeda suplicada como indulgência. A partir daí a altercação é contada e recontada meia dúzia de vezes até o fim da viagem aos passageiros que entram. Se repetida como de fato aconteceu, aí é outra história. Nos recontares o cosmopolitismo e a tolerância cariocas se desvelam. Queria o troco, era um viado – ressaltando que ninguém o questionara sobre a orientação sexual. Mas adiante era o branquelo do olho claro, que “se fosse preto”, dizia, “iam logo dizer que é favelado, bandido, arruaceiro do Jacaré.”
Passando pelo tal Jacaré, um dos lugares mais tranquilos da cidade, limpo, organizado e cheiroso, uma passageira faz um sagaz comentário com outro passageiro que se senta ao seu lado. O ônibus estava bem em frente ao local onde em Manguinhos foram construídas umas moradias populares – mais semelhantes a gaiolas, mas, um teto; afinal, pobre não tem direito de reclamar, já que insiste em viver – e também uma biblioteca, além de escola e posto de saúde. Uma das poucas e raras obras públicas em áreas como essa. Eis que a tal passageira, uma moça, de uns 40 anos aparantemente, profere indignada: “Não sei pra quê! Gastam um dinheirão com essa biblioteca. Faz aqui pra quê? É demagogia. Ninguém vai usar! É jogar dinheiro público fora. Em vez de Biblioteca tinha que ter é uma delegacia que a população ia aproveitar muito mais.” Ao que parece a moça sabia ler, pois identificou a palavra biblioteca no letreiro em frente ao edifício.
Lá pela abolição desaba a chuva de verão a testar o escoamento de água da cidade, mesmo já sabendo no que dá. A cidade mostra que as administrações municipais tinham grandes preocupações históricas e, portanto, não quiseram deixar esquecer as origens do nome do município. O “São Sebastião” ninguém lembra mesmo, ainda bem. A suburbana, no entanto, - que deixarei para as próximas gerações chamar pelo nome que hoje constam nas placas – assim como tantas partes da cidade, às chuvas de todo verão lembra-nos o rio de janeiro. Aquele que os ônibus cortam audaciosos, encharcando os pedestres, a despeito dos guarda-chuvas, nas belas ondas que fazem ao correr sobre as límpidas águas acumuladas na pista.
Os motoqueiros logo sobem nas calçadas e seguem por elas, velozes, reduzindo não por cautela aos pedestres, mas por medo de colidir com a moto que vem em sentido contrário. Assim, irreverentes e livres como manda o figurino carioca, tal como o senhor que abre a janela e arremessa a lata de refrigerante na via, ajudando o gari a ter emprego; mostrando que não se submete aos outros os motoqueiros fogem do trânsitdo pelo acostamento, calçadas ou corredores. Aliás, as motos são compradas justamente por terem essa qualidade mágica. O Código de Trânsito, que talvez seja a única lei razoável e sem “farinha pouca, meu pirão primeiro”? Quem se importa? Com um café se resolve, se der alguma zebra.
À estiada da tempestade, no trecho de trânsito mais tranquilo nosso motorista corre atrás do tempo perdido. Para o conforto e segurança de sua viagem, acelera ao máximo que pode, divertindo os passageiros em uma simulação de montanha-russa, e ajudando-os a se exercitarem ao tentarem se manter sentados enquanto a inércia empurra-os sem dó para fora de seus assentos e os que estão de pé, para o assento dos outros. A gentileza é ainda maior. Enquanto a cobradora repete a história do rapaz dos vinte e cinco centavos, o motorista segue cortês aos braços estendidos, molhados da chuva de há pouco, que suplicam por serem resgatados da longa espera pelo transporte que os levaria de volta para casa e mantém a velocidade sem parar nos pontos de ônibus. Ele tem um horário a cumprir, afinal.
Do fim de Quintino em diante, até Osvaldo Cruz ou Bento Ribeiro, o trânsito dá um nó novamente e as buzinas voltam a ressoar, bem como aqueles chiados misteriosos que os motoristas dos ônibus fazem. Ecoam os corteses comentários de “Tá cego, ô corno?”, “Sai da frente, viado!” ou “Vai pilotar um fogão!”
Quando enfim chega no destino, duas horas e quarenta minutos depois do ponto final, o malandro caminha mais dez minutos até em casa, usando a via como trajeto. Na calçada só cabem os carros que estacionam sobre elas, ali e em todo o subúrbio da cidade. Afinal, onde parar o carro? De que jeito encontraria vaga? O pedestre pode desviar pela rua. Tem que ser muito chato e sem noção para reclamar do esforcinho de desviar.
Chega então em casa, janta e, esgotado, dorme sorridente ao som do mar transmitido pela televisão durante a novela.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Concursos Literários

Eis que Drummond recebe o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, categoria poesia do concurso de 2012 organizado pela Biblioteca Nacional. Não seria nada demais, a princípio, tirando a "falta de criatividade" de premiar sempre as mesmas pessoas, não reconhecendo e dando a conhecer outras literaturas, de outras fontes, de outros tempos, de outros poemas do mar de gente que se propõe a escrever aqui e ali e busca publicar seus textos, e a muito custo acaba por conseguir. Ignora-se tudo isso e se premia Drummond. É mais fácil que se pôr em risco e laurear quem não é já reconhecido. Arriscar-se a dizer ser bom algo que não é (ainda, talvez) quase senso comum. Mas, das indignações a menor.

O grande problema está em que esse concurso é destinado a poetas vivos! Destaca o ClicRBS que "O prêmio, cuja relação de vencedores foi divulgada no dia 21 de dezembro, tecnicamente só aceita inscrições feitas pelo autor do livro, ou pela editora, desde que expressamente autorizada por escrito pelo autor. Organizado por Júlio Castañon Guimarães, o livro é uma edição crítica que compila os 10 primeiros títulos de Drummond. Na ficha de inscrição, o diretor executivo da Cosac Naify, Bernardo Ajzenberg, aparece como autor da obra por ser o detentor dos direitos autorais – algo refutado pelo próprio Ajzenberg, que não é nem o autor dos poemas nem do trabalho de organização crítica."

Difícil confiar na lisura de qualquer concurso. Parece não haver nem mais qualquer pudor, pois dizer que "não se tratava simplesmente de mais uma nova reedição de suas poesias, mas sim a primeira edição crítica do poeta" para ignorar toda a sorte dos poetas vivos é muita...

Não à toa a literatura nacional não desfruta de amplo prestígio. É graças, em parte, a desserviços como esse. As premiações são para poucos e somente para as mesmas figuras já carimbadas ou para um seleto grupo de amigos que se homenageiam uns aos outros em jornais, revistas, artigos, notícias, livros e concursos. Aos demais, a grande massa de desconhecidos, sem contatos, patrocínio ou sobrenome, resta-nos apenas o gosto do silêncio que é imposto. Essa piada sem graça. Ser inesquecível somente por jamais ter sido apresentado, por sermos destituídos do direito de que tenham ciência de nossa "vida e obra". Nem ao menos há direito a julgamento. Simplesmente não existe espaço. Falseia-se sua existência, mas se nega o acesso com a subjetividade daqueles que tem a chave dos portões, de quem define o que se pode e o que não se pode conhecer.

Era justamente de coisas como essa que eu tratava na parte do prefácio do Livro de Um Desconhecido (que já está na gráfica e previsão para Fevereiro) que transcrevo abaixo.


"Mas, de que importa? A quem importa? Esse é apenas mais um livro. Um livro que não possui patrocínio, que não possui contatos, que não possui indicações. As ganas do mercado fizeram com que literatura se transformasse em mera mercadoria como peso de papel. Como publicar um livro? Livro é voz e por isso só alguns têm direito. Os demais, nós, por mais que publiquemos somos presenteados com a indiferença. Como tudo o mais, o livro, a arte em geral e o direito a voz também foram transformados em mera mercadoria, submetidas simplesmente à lei da compra e venda, oferta e demanda, especulação, marketing e nada mais. Um apresentador de TV ou alguma pessoa que tenha influência sobre grande número de pessoas consegue publicar facilmente porque garante o retorno à editora; garante o lucro, pois, independente da qualidade literária o livro será comprado. O mercado editorial não é de divulgação literária, mas apenas mercado que põe em suas prateleiras o que pode ser vendido, ainda que o produto esteja estragado, que a qualidade seja baixa, que o cheiro seja ruim. Se vende, lá estará em lugar de destaque na prateleira. Mas literatura não é um produto, é arte. E disto esqueceram.

Não posso modelar minha obra ou reescrevê-la para que ela se adéque ao merchandising. Não me importa se é do tipo que mais tem vendido no mercado editorial ou se é rentável. Ao mesmo tempo em que esse mercado retira a condição artística da literatura, incutindo o caráter mercadoria ao livro, sequer presta ao autor contrapartida da possibilidade de sobrevivência. Um administrador ruim, tal como um médico ruim ou pedreiro ou vendedor ou advogado ruins, mal ou bem conseguem viver com a profissão que escolheram. Já o que opta pelo ofício de poeta com fim literário e não lucrativo-best seller, duvido que mesmo o melhor viva só de poesia. Talvez nem o escritor de “literatura best seller”, a qual provavelmente não sobreviverá mais de três anos e certamente não mais de vinte anos, consiga se sustentar por meio dela. Disse já que não se deve ser profissional, mas amador no sentido de escrever por arte, com liberdade de expôr, ideias, sentimentos, sonhos e não por comércio. Literatura que se preze não é de modsimo, não busca ser vendável, não é historinha. O fim máximo não é lucrativo; é artístico. Se a obra é mercadológica, para mim não serve.

Se eu gostaria de ter dezenas ou centenas de milhares de títulos vendidos? Claro que gostaria! Mas gostaria que gostassem da minha obra como ela é e não vou podá-la, amenizá-la para ser mais atraente ao público ou escrever uma história que não diga nada. Literatura não é mercadoria! Não é um produto feito para ser vendido, moldado ao gosto do cliente. Pelo menos a minha não é. Escrevo para satisfazer uma necessidade de transcrever-me o espírito ao papel e ele não está à venda.
 
Bem sabemos que na sociedade em que vivemos émais fácil morrer esmagado por uma máquina de  ou atropelado por um elefante na principal avenida de uma cidade grande a ser descoberto, a ter os trabalhos reconhecidos. A tentativa de ser escritor é o mais breve atalho para o fracasso. Somos uma multidão de desconhecidos, de anônimos condenados a serem autômatos. Quem pode pensar? Falar então?! Quanto mais escrever, já que os textos não têm fronteiras, podem ser traduzidos e lidos para si ou para outros, em voz alta, em qualquer parte. Mas, insisto. Escrevo. Independente do valor desta obra e das anteriormente publicadas por mim, esquecidas, empoeiradas nas prateleiras de biblioteca nenhuma, quantas obras literárias, artísticas, quantos pensamentos, quantas filosofias, ideias, trabalhos científicos não se perdem por sermos condenados à mordaça, por não fazermos parte da sociedade que decide quem vai e quem fica, quem fala e quem emudece, o que se conhece e o que se lança ao esquecimento? E assim padecemos da censura, a censura fingida que nos rouba os meios, que nos ergue muralhas transparentes em frente às oportunidades para fingir que não as alcançamos por não sermos capazes, mas elas estão ali.
 
E é aqui que se encaixa meu livro: O Livro de Um Desconhecido. Um com “U” maiúsculo para dar destaque, para dar ênfase. Encare-se-o como numeral ou artigo indefinido, tanto faz. Desconhecido também com letra maiúscula, pois é substantivo próprio. É na realidade o último sobrenome de todos nós, que ocultam dos registros de nascimento e das carteiras de identidade. Porém, “ainda continuo sonhando”."