quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Princípio de Publicação

Transcrevo aqui o breve ensaio que tive o prazer de ver publicado na Revista Soletras, Outrubro-2016, ano III, 34a edição, uma revista de Moçambique dedicada às letras, com o projeto de divulgação da literatura lusófona, em especial a moçambicana. No entanto, aceita textos de colaboradores de outros países. É uma revista muito interessante, cujo projeto vale muito a pena conhecer!

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Este pequeno texto que escrevo hoje, em setembro de 2016, nasceu em meados de 2009. Passo agora para a palavra escrita o que tenho repetido ao longo dos últimos sete anos como um “princípio de publicação”. Tenho explicado que parte dos textos que publicam – uma parte cada vez maior com o passar do tempo; não por alteração na produção, mas no julgamento – parte deles não me agrada. Entretanto, mesmo os que desde o início não me satisfaziam o gosto, tive o gosto de publicá-los. Tal atitude, que nomeei agora como “princípio de publicação”, ao mesmo tempo em que se baseia sobre eles, expressa os posicionamentos que tentarei esclarecer brevemente.

Primeiramente, tal atitude é um reconhecimento do caráter subjetivo e íntimo do julgamento estético. Isso não quer dizer que o julgamento estético seja isento de influências externas. O belo e o feio são ensinados e aprendidos, bem como o apreciar o belo e desgostar do feio. No entanto, esse ensinamento, como todo processo, implícito ou explícito, de educação, ele não elimina o sujeito que aprende. Ou seja, o ensinado não é passado e absorvido 100%. Ele é questionado, ainda que em silêncio, é recusado, adaptado à subjetividade do indivíduo que o experiencia, de modo que o aprendizado é sempre criativo e o reproduzido é também produção. A transmissão é uma fluidez não só em seu caráter de fluido como no seu fluir, sendo sempre outro, ainda que pareça correr entre as mesmas margens. Justamente em razão dessa fluidez, desse aprender, criar e suas subjetividades é que não cabe a mim ser o juiz do que é bom e apreciável, do que é digno de ser lido devido ao valor estético ou não. Ainda que um texto não me pareça bom, não tenho porque privar os demais de julgar por si mesmos – e mesmo criar outro texto ao interpretarem as palavras que escrevi. Ciente de não ser o padrão a ser seguido, cujos julgamentos são infalíveis e inquestionáveis, publico e assim não privo do prazer de alguém de se identificar com algo apenas porque eu não gosto. A apreciação estética é também um processo identificação. Como cada indivíduo é tão múltiplo em seus processos identificatórios, não posso partir dos meus para concluir os dos outros. Hoje não sou mais o mesmo que os escreveu. Porém, em algum momento alguma identificação ocorreu entre mim e o texto, identificação que me os permitiu escrever; identificação a qual pode ocorrer em outrem.

A ciência da falibilidade e questionabilidade, além da volatilidade, de meus posicionamentos – individuais, subjetivos e íntimos, mas localizados no mundo, no tempo, no espaço e na história – são outro aspecto do princípio de publicação. Meus julgamentos de hoje não são os mesmos de ontem nem de amanhã – nem eu sou o mesmo. Devido a essas constantes alterações, apesar da atribuída mesmidade – a qual, diga-se de passagem, tem muita utilidade – o julgamento se altera e o bom e o ruim trocam de posição incessantemente de acordo com o indivíduo e seu momento, com a sociedade e seu momento, com a alteração das possibilidades de identificação. Sendo assim, a história me absolvera; me condenará, me esquecerá, me desconhecerá, me reconhecerá e tudo isso ao mesmo tempo. Não é o meu julgamento presente que definirá o valor possível de algo para todos e para todo o sempre – ainda que meu julgamento presente seja um julgamento e tenha um juízo; ele, todavia, busca estar ciente do sujeito que fala, de onde, quando, porque, para que etc.

Além disso, uma obra nunca está pronta. A ela sempre falta algo. Este faltar proporciona ao autor o eterno desejo de melhorar. O faltar é também aquilo que sobra e falta ser retirado, mas que ao ser retirado, sobra nele uma parte que deveria ter ficado lá. A obra acabada é uma amputação de sua ligação com incontáveis outros pensamentos, desejos, sentimentos etc. Ao se limitar a publicar o que se tem certeza da qualidade e do juízo merecido, trata-se ou de ingenuidade de crer ser a sua perspectiva a perspectiva total do mundo, a-temporal, a-histórica, aliada à ingenuidade de crer que – ainda que uma tal perspectiva fosse possível – que (todos os) outros estariam nessa mesma posição. Ou trata-se dessa ingenuidade, ou é não publicação, ou é incerteza.

Por fim, esse princípio é um ataque-aposta à imagem de perfeição, ao ideal do bom escritor, poeta etc. como coisa concreta, como ser real e existente. Essa sacralização do poeta, do escritor, do filósofo contribui para a redução dos escritores, poetas, filósofos, como se “neles” não houvesse texto “ruim”, não houvesse frivolidade, erro, insucesso, transformação… tanto dele durante ‘seu’ tempo – ou seja, o poeta não é o mesmo que ele mesmo – tanto no decorrer do tempo como história. O Fernando Pessoa, o Castro Alves, o Machado de Assis etc. que lemos hoje não são os mesmos que foram lidos há 100 anos. A representação dos indivíduos que escreveram, o significado que assumem, o que dizem são hoje outros e também o serão amanhã. O princípio de publicação consiste em desnudar a sacralização e expôr o processo de transformação, a origem feia do belo e a origem bela do feio, além das multiplicidades identificatórias de um indivíduo dividido entre um sem-número de si mesmos e a in-identificação das identidades que assume. Eis o ataque. A aposta é de ser eu capaz de com minha vida e textos demonstrar esse princípio sem deixar de ser eu e me transformando nele; apostando ainda que este pequeno esclarecimento, bem como a produção que dá sentido a ele, poderão alcançar olhos e ouvidos; e não apenas hoje, como constantemente, levando consigo em seu fluir, parte das terras que o margeiam, das árvores que suas águas alimentam, das pedras no meio do caminho, continuamente desaguando no seu desaparecimento.

13-09-16

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